Da infância, somos todos sobreviventes. Alguns mais do que outros. Esta
é a história de um homem em busca de compreender a si mesmo. E de
tentar, como adulto, ser diferente do menino pelo poder da narrativa.
Esta história é contada aqui porque foi a nossa ignorância – a minha e
também a sua – que destroçou a vida dessas duas crianças. E tem
destroçado – às vezes em brutal literalidade, com tiros e pancadas – a
vida de muitos – demais.
Antes, a história de como nos conhecemos. Ele me enviou o primeiro
email no início de dezembro. Um amigo dele acabara de ser assassinado
por homofóbicos, e ele tinha se deparado com uma campanha na internet
que arregimentava pessoas a se unirem para executar homossexuais. Ele
tinha medo de sair de casa. Estava assustado. E também com raiva. Pedia
que eu denunciasse a campanha nesta coluna.
Respondi que escrever sobre esse tipo de manifestação era amplificar
uma voz de ódio. Afinal, o sonho de quem divulga algo na internet é ser
acessado, replicado, comentado, seguido, citado. Em vez disso, propus a
ele que me contasse a sua história para – talvez – publicá-la aqui.
Contar uma história que nos aproxime é a melhor resposta que podemos dar
a quem usa as palavras para aumentar as distâncias.
Desde então, iniciamos uma correspondência. Chequei a sua identidade,
mas respeitei sua decisão de ocultar seu nome. Nessa narrativa real,
vamos chamá-lo de Pedro. Filho único de uma família de classe média do
interior de Minas, Pedro tem 28 anos, é engenheiro ambiental e hoje vive
sozinho em Goiânia. Um brasileiro como tantos outros, que trabalha duro
e paga seus impostos. Todo ano ele participa da parada gay, mas não é o
que se poderia chamar de um militante do movimento. Em Goiânia, assume
sua homossexualidade em todos os espaços – e também no trabalho. Mas
preferiu se afastar da família a contar que era gay. Neste Natal, como
veremos mais adiante, ele fez um pequeno grande gesto.
Aos poucos, ao longo da nossa troca de cartas virtuais, percebi que não
se tratava apenas da história de Pedro. Mas da história de Pedro e de
João. Quando era criança, o melhor amigo de Pedro era João. E era João
quem não conseguia esconder dos colegas de escola que era gay. Pedro
posicionou-se ao lado dos mais “fortes”, como tantos de nós a vida toda,
e mais ainda na infância. Alinhou-se ao lado dos pequenos machos quando
eles tornaram a vida de João um inferno humano. Tão humanamente
infernal que ele acabou mudando de cidade no início do ensino médio.
Como acontece ainda hoje em muitas escolas, nem professores, nem pais,
nem colegas, ninguém fez gesto algum na direção de João. Todos
permitiram, por ação ou omissão, que João fosse agredido, acuado,
encurralado e, por fim, exilado.
Essa memória assombra Pedro até hoje. Como a maioria de nós, ele queria
ter sido mais forte na infância. Não mais “forte” como os pequenos
machos, tão atrapalhados com sua sexualidade que precisavam “denunciar” a
do outro. Pedro queria ter sido tão forte quanto João, que ousava ser.
Se tivessem sido os dois, talvez pudessem ter resistido mais. Mas, por
muito tempo, Pedro mal pôde consigo mesmo. E então, quando ele já tinha
sua própria vida adulta e independente, um de seus melhores amigos foi
assassinado porque era. Gay. E Pedro, de novo, sentiu-se muito
impotente.
Contar sua história talvez seja a forma encontrada por Pedro para
inverter o curso dessa memória dentro de si. Pronunciar o que virou
silêncio sem ser – e por assim ter sido tanto o feriu. A ele e a João,
antes que ambos pudessem se defender. Quando pergunto sobre esse círculo
que se fecha, Pedro escreve: “Acho que vai me incomodar pelo resto da
vida”.
É espantosa a quantidade de dor que pode caber numa vida apenas por
causa da ignorância. Da nossa ignorância. A história de Pedro – e também
a história de Pedro e de João – é assim.
O começo: ou como Pedro expôs João para que não o descobrissem
“Nasci numa cidade do interior de Minas com 80 mil habitantes. Pequena,
conservadora, cheia de falsos moralismos. Desde muito cedo eu percebi
minha orientação sexual. Desde criança achava os meninos mais
interessantes do que as meninas. Sempre pensei que no órgão sexual
feminino faltava alguma coisa. E tinha curiosidade para ver o órgão
sexual dos meus amigos. Mas nunca fui muito sexualizado na infância e
nem mesmo na adolescência. Talvez evitasse a sexualidade pela
consciência da minha orientação sexual.
Ainda no colégio, eu era uma pessoa extrovertida e comunicativa, mas
quando percebi que havia algo de diferente, tornei-me recluso. Sempre
estudei no mesmo colégio, com a mesma turma. Desde o início, tinha um
colega que conseguia disfarçar menos sua homossexualidade e, para
continuar pertencendo ao grupo, eu participava de ataques de bullying
homofóbico. Estes eram os momentos nos quais eu me sentia pior.
João sempre estudou na mesma turma que eu. Éramos muito amigos na
infância, nossas mães eram amigas e ambos éramos filhos únicos. Ele
frequentou a minha casa e eu a dele, brincamos muito na infância, éramos
os melhores amigos. Apesar de ser um ano mais velho do que eu, João não
aparentava, porque sempre foi muito sensível e delicado. O fator ‘não
jogar bola’ influencia muito o que as crianças pensam quanto à
sexualidade de outra. E João não jogava.
É engraçado. Nunca trocamos uma palavra sequer em relação ao sexo. Ao
menos, não que eu me lembre. Jogávamos muito videogame juntos, e
geralmente ele passava pela manhã em minha casa para irmos ao colégio.
Não sei bem explicar como, mas nossa relação e encontros foram
tornando-se esparsos, até que nos tornamos meros colegas de sala. Ele
passou a ser um garoto solitário, menos risonho. Aproximou-se mais das
garotas e adquiriu ‘trejeitos’, que talvez sempre tenha tido, mas que
somente com o amadurecimento e a consciência do mundo eu e os outros
garotos começamos a perceber.
Eu tinha 12 ou 13 anos nessa época. Acho que, por pertencer a uma
família que preserva bastante as tradições mineiras, na qual era comum
escutar comentários homofóbicos e até mesmo racistas, eu tinha o
preconceito internalizado de que a homossexualidade era algo errado. E é
muito estranho ser ‘errado’. Eu não tinha com quem conversar, eu não
tinha com quem dividir meus desejos. E acho que foi a fase na qual eu
tive mais medo na minha vida. Era um medo de tudo, um medo de mim.
Adquiri repulsa por alguém que eu imaginava ser a pessoa que mais se
assemelhava a mim. Julgava-o sujo. Era como se o distanciamento que
criei com ele disfarçasse a minha sujeira. Não sei bem ao certo, mas em
virtude de suas maneiras mais delicadas, nós, os meninos, simplesmente
deixamos de conviver com ele. Não sei como surgiram os primeiros
episódios de bullying. Mas, aos poucos ele começou a ser motivo de
chacota na sala e, em pouco tempo, de todo o colégio.
Crianças e adolescentes têm uma maldade que eu não entendo. Todos os
dias escrevíamos no quadro seu apelido: “João viadinho”. A situação de
bullying era clara. Ele sofria muito, era perceptível. Quando cruzávamos
com ele, ríamos e imitávamos trejeitos femininos. Os meninos da sala
não o tocavam, pois, caso isso ocorresse, pegariam ‘viadice’. Imagino o
quanto isso foi dolorido para ele.
Logo, ele começou a permanecer todo o recreio dentro da sala de aula. E
as agressões passaram do campo das palavras para o físico. Em suas
tentativas de revide, ele levava tapas, socos e pontapés. Eu não cheguei
a fazer isso. Mas, os outros garotos, sim. Quando ele passava pelo
corredor, próximo ao grupinho dos ‘machos’, além de um ‘E aí,
viadinho?’, ele levava sempre uns bons tapas, e sempre havia algum
engraçadinho para sair rebolando atrás dele. Eu nunca o olhava nos
olhos. Sentia muita vergonha.
É uma dinâmica estranha. Você tem que pertencer a um grupo, e ser
diferente te exclui. Hoje, entendo que muita daquela repulsa estava
relacionada a um certo grau de atração que eu sentia por ele. E aquilo
para mim era errado. Os professores nunca tomaram nenhuma atitude.
Ninguém nunca tomou nenhuma atitude. Escutei trechos de uma conversa de
minha mãe com a mãe dele em relação à sua sexualidade, mas não consegui
entender muito e não fui capaz de tocar no assunto. Até hoje não consigo
compreender como fui capaz de ter feito tudo aquilo. Sei que fui muito
covarde. Porque, no fundo, eu sabia pelo que ele estava passando. E
nunca lhe estendi a mão.
Quando você se descobre gay – o que faz você se sentir diferente da
maioria –, isso faz com que, de uma maneira inconsciente, você lute para
ser igual. É uma resistência interna, uma forma estranha de luta entre o
‘você aparente’ e o ‘você real’. Eu tinha aversão ao meu corpo, a toda e
qualquer coisa relacionada à sexualidade. Qualquer programa de TV,
livro ou texto que se referisse à sexualidade me causava pânico. Eu não
passei pela fase comum aos adolescentes, na qual a masturbação é uma
atividade comum. Eu sentia medo, pois era nessas ocasiões que eu tinha a
certeza de que realmente era homossexual.
Não é somente seu ciclo social que é quebrado através da fase de
reclusão. Dentro de você é como se o fator sexualidade também fosse
rejeitado. Sexo assusta. O que não se aceita é melhor que fique
escondido. Acho que senti repulsa por João ao perceber que alguém tinha
uma aceitação maior consigo mesmo do que a que eu tinha para comigo. Eu
conseguia reprimir, então era difícil aceitar que aquela pessoa não
conseguisse.
Eu nunca o defendi. Tinha medo de que toda aquela repulsa se voltasse
contra mim. João saiu da escola e da cidade no final do primeiro ano do
ensino médio. Mudou-se para Uberlândia (MG). Nesse meio tempo, acho que
até mesmo por um grande peso na consciência, foi a minha vez de me
afastar. Tranquei-me no quarto e não queria sair de lá.”
Pedro se esconde – até de si mesmo
“No segundo ano do ensino médio, minha consciência da orientação sexual
atingiu seu ápice. Eu não conseguia mais me esconder muito e tinha
muito medo da reação das pessoas. Forçava-me a pensar somente em
meninas, mas já não conseguia mais fazer isso. As Playboys, compradas
escondidas pelos amigos, não me interessavam nem um pouco. Eu me
excitava justamente pensando na excitação dos meus amigos diante
daquelas imagens.
Foi uma fase muito difícil. Eu inventava um monte de histórias para não
ir ao colégio, me afastei de tudo e de todos. Minha vontade era ficar
trancado no quarto para que ninguém pudesse me ver. Acho que, no fundo,
eu estava me punindo pelo meu comportamento errado frente à sexualidade
de João. Não sei bem o que seria depressão, mas, se por algum momento da
minha vida passei por isso, foi justamente nesse ápice de consciência.
Lembro que chegava a me mutilar. Tinha raiva de mim, de minha imagem.
Tinha nojo do meu órgão sexual e de qualquer ereção eventual. Eu evitava
levantar da cama, tinha muito sono, não queria conviver com ninguém.
Lia bastante, muito, mas muito mesmo... Nessa época li tudo de
Dostoiévski, Tolstói. Um personagem em especial me acompanhou pela vida
inteira: Kirilov, do livro ‘Os Demônios’, de Dostoiévski. Ele dizia algo
como: ‘Deus é o medo de depois da morte’.
Foi nessa época que minha mãe percebeu que tinha algo de errado comigo e
me mandou para um psicólogo. Mas não tive nenhuma afinidade com ele.
Não podia confiar em alguém que minha mãe pagava. Ali, no consultório,
eu ajudei a moldar ainda mais meu personagem, pois tinha que tentar me
desvencilhar de alguém que, teoricamente, estaria preparado para fazer
uma leitura das pessoas. Lembro vagamente de que, na primeira consulta,
ele afirmou: ‘Sua mãe me disse que você tem andado triste e tem ficado
muito tempo trancado no quarto. E aí, o que está acontecendo?’. Senti-me
pressionado. Depois dessa experiência, nunca mais voltei a psicólogos.
Aos 15 anos, eu estava tão solitário que pensei em parar de estudar ou mudar de colégio. Se as pessoas que conviviam comigo soubessem de alguma coisa, meu mundo poderia acabar. Não frequentei nenhuma das festinhas de 15 anos de minhas amigas, não fui à festa alguma, não fui adolescente. Nesse período de reclusão, eu passava o fim de semana todo trancado no meu quarto. Por um lado foi bom: estudei muito e não tive nenhuma dificuldade para passar no vestibular. Acho que é essa reclusão, causada pela dificuldade de autoaceitação, que faz com que muitos dos gays sejam bem sucedidos nos estudos. É como se perdêssemos um período da vida social e buscássemos nos livros um afago.”
Aos 15 anos, eu estava tão solitário que pensei em parar de estudar ou mudar de colégio. Se as pessoas que conviviam comigo soubessem de alguma coisa, meu mundo poderia acabar. Não frequentei nenhuma das festinhas de 15 anos de minhas amigas, não fui à festa alguma, não fui adolescente. Nesse período de reclusão, eu passava o fim de semana todo trancado no meu quarto. Por um lado foi bom: estudei muito e não tive nenhuma dificuldade para passar no vestibular. Acho que é essa reclusão, causada pela dificuldade de autoaceitação, que faz com que muitos dos gays sejam bem sucedidos nos estudos. É como se perdêssemos um período da vida social e buscássemos nos livros um afago.”
Pedro tenta fugir – mas não há fuga de si mesmo
“Passei em três universidades federais. A minha escolha foi pela UFOP
(Universidade Federal de Ouro Preto), não porque era meu curso
predileto, mas sim porque Ouro Preto era a cidade mais distante da casa
de meus pais. Com 17 anos mudei-me para Ouro Preto, pensando que tudo
seria diferente. Não foi. Cursei engenharia numa cidade que priva pelo
tradicionalismo, convivendo em repúblicas com cerca de 15 homens. Todos,
ao menos aos olhos da comunidade universitária, heterossexuais.
Bem no início do curso, eu presenciei uma cena que me trancou ainda
mais dentro do armário: um dos moradores de uma república vizinha à
minha, líder estudantil, influente no meio acadêmico, foi flagrado
contando à empregada da casa que tinha um caso com outro estudante. O
apelido dele tornou-se sinônimo de gay no ambiente universitário. Os
outros moradores da casa nem pestanejaram: jogaram todas as coisas dele
para fora da casa. Nem se deram ao trabalho de ouvir um cara que havia
morado com eles nos últimos quatro anos. Foi muito estranho ver as
coisas dele jogadas no chão da famosa Rua Direita.
Eu era um adolescente exemplar. Nunca tinha bebido, nunca tinha usado
drogas. Era virgem, nunca beijara ninguém. Nessa época, comecei a viver
em uma história inventada. Para me inserir em um grupo, eu comecei a
usar um disfarce. O ‘porra-louca’ heterossexual. Beijava meninas, mas
tinha muito medo de que alguma delas quisesse algo mais. Comecei a beber
muito e a ser usuário de maconha e, mais tarde, de cocaína. Era uma
fuga, era um jeito de ser querido por um grupo, era uma forma de estar
inserido. Era ser comum. E assim foi durante cinco anos. Anos lentos,
intermináveis.
Uma colega de sala foi a primeira pessoa que soube de minha homossexualidade, já no final do curso. Foi uma explosão. Era como se eu estivesse tirando o maior peso do mundo de minhas costas. Só consegui dizer: ‘Sou gay’. E comecei a chorar sem parar. Era um misto de medo da reação e de alívio indescritível. Pela primeira vez eu tirava a minha máscara para um outro ser humano.
Uma colega de sala foi a primeira pessoa que soube de minha homossexualidade, já no final do curso. Foi uma explosão. Era como se eu estivesse tirando o maior peso do mundo de minhas costas. Só consegui dizer: ‘Sou gay’. E comecei a chorar sem parar. Era um misto de medo da reação e de alívio indescritível. Pela primeira vez eu tirava a minha máscara para um outro ser humano.
Formei-me na universidade em 2006, com 22 para 23 anos. Era virgem,
escolado no submundo do álcool e das drogas. Antes de me mudar de Ouro
Preto, reuni todos os 15 rapazes que moravam comigo na república. Eu não
queria sair daquela casa tendo omitido quem eu realmente era. Nessa
reunião, completamente drogado, eu vomitei, com certa raiva de mim e de
tudo, que eu era gay e que aquilo era o mínimo que eu podia fazer por
pessoas com as quais eu convivi.
Logo após um silêncio, nada convencional, eu presenciei as mais
distintas reações. De ódio a apoio. Há pessoas com as quais nunca mais
troquei palavras. Mas também recebi um carinho que eu não imaginava que
fosse possível. Descobri que, apesar dos revezes, eu encontraria pessoas
que não encaravam aquilo como aberração. Acho que aquele momento foi
fundamental para que eu pudesse encarar a vida. Eu nunca tinha encostado
em um homem, eu nunca tinha tido uma relação verdadeira. Na verdade,
acho que toda a minha felicidade era falsa.”
Pedro tira a máscara – arranca-se de si
“Passei em um concurso público estadual e fui trabalhar em Uberlândia. A
independência financeira é muito importante para um homossexual,
significa o primeiro momento em que não é preciso dar satisfação a
ninguém sobre o que você sente. Fui para Uberlândia com a pretensão de
viver.
Logo no primeiro fim de semana, resolvi ir até uma casa noturna GLS.
Era 4 de agosto de 2006. Recordo a data porque até hoje mantenho o
folder (propaganda da casa). Esse folder é como se fosse a minha Lei
Áurea. Representa a minha liberdade.
Minha noite foi tragicômica. Hoje dou muita risada ao lembrar. Eu era um gay ‘não gay’. Logo, fui com uma roupa inadequada, social demais. Não conhecia nenhuma música, afinal vivia ouvindo rock e nem imaginava quem era Britney Spears. Não consegui disfarçar minha surpresa ao ver todas aquelas pessoas descoladas e felizes, de mãos dadas. Era como se aquelas mãos dadas me hipnotizassem, era absolutamente sensacional cada flagra de beijo. Os transexuais, travestis e drag queens me assustavam, era como se tivesse que manter distância. Afinal, até aquele dia, era isso que a vida tinha me ensinado.
Minha noite foi tragicômica. Hoje dou muita risada ao lembrar. Eu era um gay ‘não gay’. Logo, fui com uma roupa inadequada, social demais. Não conhecia nenhuma música, afinal vivia ouvindo rock e nem imaginava quem era Britney Spears. Não consegui disfarçar minha surpresa ao ver todas aquelas pessoas descoladas e felizes, de mãos dadas. Era como se aquelas mãos dadas me hipnotizassem, era absolutamente sensacional cada flagra de beijo. Os transexuais, travestis e drag queens me assustavam, era como se tivesse que manter distância. Afinal, até aquele dia, era isso que a vida tinha me ensinado.
Cheguei bem tarde, depois de ter dado várias voltas no quarteirão, por
medo de ser identificado nas proximidades daquele ambiente. No lounge,
sozinho, atento aos diálogos alheios, me impressionava o caos relativo
ao gênero: ‘amiga’, ‘bicha’. Minha primeira visita ao banheiro foi
hilária. Entrei e saí correndo. Era um misto de medo, tesão, tensão,
apreensão e uma felicidade doida. Nem imagino o que as pessoas pensavam
daquele cara que passou a noite inteira sentado numa cadeira do balcão,
atento a tudo, surpreso e com um sorriso estampado no rosto. Quando se
aproximavam de mim ou percebia um flerte, eu me esquivava e de certa
forma corria. Lembro que naquele dia nem dormi direito relembrando cada
momento.
Na noite seguinte, não resisti e voltei à mesma casa noturna. Nessa
segunda noite, mantive um diálogo com o bartender. Talvez, pela
ansiedade, tenha bebido muito e isso tenha feito com que baixasse a
guarda e permitisse que as pessoas se aproximassem. Fiquei até muito
tarde. O bartender veio, então, conversar comigo. Não lembro ao certo,
mas acho que falei muita besteira. Eu suava frio, tremia. Acho que,
percebendo meu estado alcoólico, e depois de saber que aquela era a
minha segunda noite num ambiente gay, ele arriscou um beijo. 5 de agosto
de 2006: aos 22 anos, eu fui beijado pela primeira vez por um homem.
Aquilo foi muito para mim. Afastei-o, não me despedi e saí o mais
rápido que pude daquele lugar. Senti repulsa pelo meu corpo, senti nojo
de mim. É estranho, mas foram sensações completamente antagônicas, uma
oposição entre o meu desejo e o que a sociedade me imprimiu. Ao mesmo
tempo que era prazeroso, eu sentia rejeição pelo fato de estar beijando
um homem. Apesar de ser meu maior desejo, era algo que eu tinha
aprendido ser inaceitável.
Em casa, escovei os dentes diversas vezes. Como se aquilo pudesse
apagar meu ato, como se fosse possível redimir o meu ato. Por quê?
Porque eu fui ensinado assim. Porque fui criado num berço católico no
qual minha recente atitude era pecado. Eu era uma aberração.
Como filho único, eu também sentia vergonha por ser uma decepção muito
grande para a minha mãe, que sempre teve a expectativa de ter netos.
Naquela manhã, eu era o maior lixo do mundo. Abusei ao extremo do uso de
cocaína, associada ao uso de ansiolítico. E o que me deixava pior era a
sensação: ‘Tinha sido muito bom’. Chorei muito.
Não sei ao certo, mas acho que por dois ou três meses retornei à minha
reclusão. Passava os finais de semana em casa, reprimindo meus desejos.
Mas nada pode ser reprimido para sempre.
Depois de uma festinha de aniversário de uma colega de trabalho, num
local próximo à casa noturna que já tinha frequentado, eu criei coragem
e, após contornar diversas vezes o quarteirão, entrei. Receoso, troquei
olhares com o bartender. Encarei, flertei, fui retribuído. O tempo
demorou a passar e já era quase dia quando ele pôde sair do bar e vir ao
meu encontro. Dessa vez, fui eu que tomei a iniciativa e o beijei.
Dessa vez, eu não fugi e aquela meia hora em que ficamos juntos foi a
primeira vez que um cara de 23 anos estava aceitando a si mesmo. Era a
primeira vez que eu podia dizer que estava realizado, feliz.
Depois daquela noite, passamos a nos encontrar em todos os finais de
semana. Mas, sozinho em casa, depois dos beijos, eu ainda me sentia
angustiado e estranho. Tive a sorte, porém, de ter encontrado uma pessoa
fantástica, que respeitava as minhas restrições. E elas eram muitas. A
primeira vez em que permiti algo mais íntimo foi após dois meses de
encontros, fim de semana após fim de semana. Meu namorado só começou a
frequentar a minha casa após três meses de relacionamento. Ele
compreendia, mas não deixava de ficar chateado com tamanho recalque.
Cobrava sexo, mas eu tinha muito medo. Estávamos juntos havia cinco
meses quando, pela primeira vez, ele foi dormir comigo. E foi a primeira
vez que tivemos uma relação sexual. Era também a primeira relação
sexual da minha vida.”
Pedro descobre que não o perdoam por ser
“Mesmo trabalhando para um órgão que, a princípio, deveria privar pelo
cumprimento das leis, eu já sofri homofobia. Sinto um certo afastamento
por parte de algumas pessoas simplesmente pelo fato de eu não querer me
esconder mais. Minhas opiniões e minha qualidade técnica são diminuídas
por causa da minha orientação sexual. Por quê? Ser gay me tornou menos
competente?
Sinto raiva de uma sociedade que tem medo de ver beijo gay na novela
das oito, mas que se delicia assistindo às piores atrocidades nos
noticiários sensacionalistas. Fico me perguntando: por que eu incomodo
tanto? Por que gostar de alguém traz tanta violência? De onde vem esse
ódio?
É muito difícil compreender por que a comunidade evangélica, por
exemplo, é capaz de perdoar a assassinos ou bandidos que se converteram à
religião e não aceitam que eu caminhe de mãos dadas com meu namorado
pela rua. Qual é o crime de se caminhar de mãos dadas pela rua?
Há pouco perdi um de meus melhores amigos e sei que seu assassinato
ficará impune. Estamos no Brasil e não vai ser a primeira vez que um
crime ficará impune. Pior ainda se são crimes de homofobia ou crimes que
a nossa homofobia internalizada não permite que sejam investigados.
Uma vez eu fui vítima de um golpe conhecido como ‘Boa Noite
Cinderela’. Apesar de todos os protestos de que não devia fazer um B.O.
(boletim de ocorrência), fui até uma delegacia. E lá realmente desisti
de fazer o B.O.. Nunca fui tão humilhado em toda a minha vida. O
policial que me atendeu teve uma crise de riso enquanto eu relatava o
caso. Aposto que não seria esta a reação caso o evento tivesse ocorrido
com um macho alfa. Eu desisti de denunciar, voltei para casa e me senti a
pessoa mais impotente do mundo.
Em outra oportunidade, vi um grupo de adolescentes na saída de uma
festa GLS agredindo um garoto que aparentava estar muito bêbado.
Novamente, apesar dos protestos de um namorado da época, interferi e
acabei me dando muito mal. Apanhei um pouco, pois nem tenho porte físico
para enfrentamentos e, quando a polícia chegou, os três adolescentes
foram protegidos, e eu quase fui parar na delegacia. Segundo os
policiais, eu estava gerando desordem.
Já perdi a conta de quantos amigos, em Goiânia ou em Uberlândia, já
sofreram agressões na rua por serem gays. Ao tentar denunciá-las, as
vítimas foram ridicularizadas, e os agressores liberados. Eu não tenho
mais coragem de procurar a polícia para denunciar qualquer forma de
preconceito. Vivemos no nosso mundinho, disfarçados. Vivemos num
‘gayto’.”
Pedro aproxima-se dos pais – que não sabem (ou fingem não saber) que é
“Distanciei-me dos meus pais há muito tempo. E continuei cada vez mais
distante. Morando há três anos e meio em Goiânia, eles nunca tinham
vindo me visitar. Neste final de ano, pela primeira vez, eu convidei-os a
passar o Natal na minha casa. E eles vieram. Acho que minha pequena
atitude abriu uma brecha para novamente possuir uma família, possuir um
colo de mãe.
Não que meu Natal tenha sido maravilhoso. Na verdade, foi cheio de
conflitos. Eu e minha mãe nos desconhecemos por completo. Eu e meu pai
nem nos falamos, e então surgem diversas divergências. Eles chegaram no
dia 23 de dezembro, à noite, e foram embora no dia 25, pela manhã.
Na tarde de Natal, descobri uma cartinha que minha mãe tinha deixado
sobre o sofá. Transcrevo aqui um trecho: ‘O que mais queremos é a sua
realização em todos os sentidos, pois, de qualquer forma, você é nosso
único tesouro e não queremos continuar dessa forma. Infelizmente,
precisamos te conhecer melhor. E saiba: seja qual for a circunstância,
estaremos com você. Você sabe que não podemos adiar o que queremos,
ainda mais que já estamos em contagem regressiva. Espero que leia umas
várias vezes essa recomendação. Se não quiser comentar sobre ela
falando, me escreva e me conte um pouco de você. Beijos. Te amamos
muito. Mãe e pai’.
Tenho passado esses últimos dias pensando em qual seria a melhor forma
de contar tudo de mim para meus pais. Mas ainda não descobri como. Já
tentei escrever uma carta umas dez vezes, mas, ao final, rasgo tudo.
Como se o que estivesse escrito ali fosse algo que tivesse o poder de
torná-los extremamente infelizes."
O meio: ou como Pedro reencontra João no gesto possível
“Eu era só um menino, mas foi com João que senti remorso pela primeira
vez, que tive consciência do que é covardia. Voltei a encontrá-lo em
nossa cidade do interior mineiro em algumas poucas oportunidades. E em
todas elas não fui capaz de me reportar a ele. João assumiu sua
homossexualidade, e não posso esquecer os comentários maldosos de minha
mãe, com suas amigas. Eu sentia raiva.
João tornou-se arquiteto. Quando me mudei para Uberlândia, vivíamos na
mesma cidade e ainda hoje temos alguns amigos comuns. Mas nunca
dividimos uma roda de amigos. É um somatório de minha vergonha e da sua
mágoa. Para alguns dos amigos em comum, eu contei toda a história.
Segundo eles, ele nunca mencionou o assunto.
Uma noite, identifiquei-o numa boate GLS. João havia se tornado um
homem extremamente efeminado, mas muito lindo. Estava rodeado de amigos
e, assim que tive oportunidade, eu o abordei. Entendo completamente as
poucas palavras que ele dirigiu a mim. Havia mágoa na forma como ele me
tratou, e eu compreendo a sua postura. Não toquei no assunto. Senti
muita vergonha e, assim que pude, me afastei. Não consegui pedir
desculpas. Algum tempo depois eu soube que João havia se mudado para a
Austrália. Não sei se um dia voltarei a vê-lo”.
Créditos ao Revista Época
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